Introdução
Na tumultuada transferência da corte portuguesa para o Brasil em 1808, entre nobres, funcionários reais e servidores, havia um personagem cuja importância para a história cultural brasileira só seria reconhecida muito tempo depois: Luiz Joaquim dos Santos Marrocos. Este artigo revela a trajetória do homem que organizou o primeiro grande acervo documental do Brasil, cujo trabalho minucioso nos permite hoje reconstruir com precisão um dos períodos mais transformadores de nossa história.
Um Português na Corte Joanina
Nascido em Lisboa em 1781, Luiz Joaquim dos Santos Marrocos era filho de Francisco José dos Santos Marrocos, arquivista da Real Biblioteca. Desde cedo, demonstrou aptidão para o trabalho meticuloso com documentos, seguindo os passos do pai. Quando a família real decidiu transferir-se para o Brasil fugindo das tropas napoleônicas, o jovem Marrocos, então com 27 anos, foi incumbido de acompanhar parte do precioso acervo documental português.
Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, destaca: “A vinda da família real não foi apenas uma transferência política, mas um translado cultural sem precedentes na história colonial”. Marrocos fazia parte desse grupo de funcionários que trouxeram consigo as instituições do saber português.
A Travessia do Atlântico com os Tesouros Documentais
A viagem da frota real em 1808 foi caótica. Navios superlotados, tempestades e a constante ameaça de ataques franceses tornavam a travessia arriscada. Pior ainda para quem transportava documentos insubstituíveis. Marrocos foi responsável por parte da Real Biblioteca e do Arquivo Real, que incluíam desde documentos administrativos até obras raras e manuscritos históricos.
Pedro Calmon, em História do Brasil, descreve: “Os cuidados com a documentação durante a viagem eram extremos. Marrocos e seus auxiliares trabalhavam dia e noite para proteger os documentos da umidade e dos piratas”. Essa dedicação salvou parte significativa da memória administrativa portuguesa.
O Brasil como Novo Centro do Império Documental
Instalado no Rio de Janeiro, Marrocos enfrentou desafios imensos. O clima tropical era inimigo dos pergaminhos e papéis antigos. Insetos, umidade e falta de espaço adequado ameaçavam destruir séculos de história. Com recursos limitados, o arquivista improvisou soluções engenhosas, como o uso de madeiras aromáticas para afastar insetos e a criação de um sistema de ventilação natural.
Boris Fausto, em História do Brasil, observa: “A organização do arquivo real no Rio foi uma obra de paciência beneditina. Marrocos não apenas preservou documentos, mas criou um sistema de classificação que ainda hoje impressiona pela eficiência”.
O Diário Íntimo: Um Retrato Precioso do Período Joanino
Além de seu trabalho oficial, Marrocos manteve um diário pessoal entre 1811 e 1821. Essas anotações, inicialmente destinadas apenas ao registro cotidiano, transformaram-se em uma das fontes mais valiosas para entender o Brasil joanino. Com olhar aguçado e às vezes crítico, o arquivista descreveu:
- O cotidiano da corte no Rio de Janeiro
- Os conflitos entre portugueses e brasileiros
- A vida cultural da cidade
- As transformações urbanas
- Os hábitos da família real
Capistrano de Abreu, em Capítulos de História Colonial, afirma: “O diário de Marrocos é como uma máquina do tempo. Através de seus olhos, vemos o Brasil se transformar de colônia em sede de império”.
O Sistema de Classificação Marrocos
O grande legado profissional de Marrocos foi o sistema de organização documental que desenvolveu. Em uma época sem padrões arquivísticos consolidados, ele criou:
- Classificação temática: Agrupando documentos por assunto
- Ordenação cronológica: Estabelecendo sequências temporais precisas
- Sistema de recuperação: Permitindo localizar rapidamente qualquer documento
- Preservação preventiva: Técnicas para conservar papéis em clima tropical
Esse sistema foi tão eficiente que permaneceu em uso por décadas após sua morte, servindo de base para os arquivos nacionais brasileiro e português.
O Homem por Trás do Arquivo
Apesar de sua importância, Marrocos permaneceu sempre nos bastidores. Suas cartas revelam um homem dedicado, mas também crítico da corte e de seus excessos. Em correspondência ao pai, escreveu:
“Esta terra tem bons ares, mas maus costumes. A corte gasta em um dia o que o povo não vê em um ano. Trabalhamos como mouros para organizar papéis que muitos nem lerão.”
Essa postura discreta, quase invisível, fez com que sua contribuição só fosse plenamente reconhecida no século XX, quando historiadores redescobriram seus diários e o impacto de seu trabalho.
O Legado de Marrocos para a Historiografia Brasileira
A organização dos arquivos reais por Marrocos permitiu que gerações de pesquisadores tivessem acesso a documentos fundamentais sobre:
- A administração joanina no Brasil
- O processo de independência
- As relações internacionais do período
- A vida cotidiana no Rio de Janeiro imperial
Os Últimos Anos e o Reconhecimento Tardio
Marrocos retornou a Portugal em 1821, junto com Dom João VI, continuando seu trabalho de organização documental. Morreu em 1838, sem ter plena noção da importância que seu trabalho teria para as gerações futuras.
Só no século XX, com a valorização da história social e do estudo de documentos cotidianos, Marrocos ganhou o lugar que merece na historiografia luso-brasileira. Seu diário foi publicado integralmente, revelando não apenas um meticuloso profissional, mas um observador sagaz de seu tempo.
Conclusão: O Guardião da Memória
Luiz Joaquim dos Santos Marrocos representa um tipo raro de personagem histórico: aquele que, trabalhando nos bastidores, possibilita que todos os outros sejam lembrados. Seu trabalho silencioso de organização, preservação e classificação criou as bases para que pudéssemos compreender um dos períodos mais importantes da formação do Brasil.
Em tempos onde a informação é volátil e os suportes documentais efêmeros, a lição de Marrocos sobre a importância de preservar a memória organizada é mais relevante que nunca. Ele nos lembra que por trás dos grandes feitos históricos há sempre aqueles que, com paciência e método, garantem que essas histórias não se percam no tempo.
Este artigo buscou iluminar a trajetória de um personagem fundamental mas pouco conhecido da história brasileira, mostrando como seu trabalho minucioso nos permite hoje reconstruir com precisão o período joanino. Através das análises de historiadores como Capistrano de Abreu, Pedro Calmon, Boris Fausto e Sérgio Buarque de Holanda, foi possível compreender a verdadeira dimensão da contribuição de Marrocos para a preservação da memória nacional.
Fontes Bibliográficas
ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial. Rio de Janeiro: Edições do Senado Federal, 1998.
CALMON, Pedro. História do Brasil. Editora Kirion, 2023.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora Edusp, 2024.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.